Uma nova guerra fria pra atiçar nosso campismo ou apenas o pânico do capitalismo terminal?
Inteligência Artificial, ecofascismo, terrorismo, facções, Itaipu, ferrovias, Amazônia, agro, superpotências... falaremos de muita coisa, menos do "genocídio branco na África do Sul" que não existe
A imagem que ilustra esse artigo é a capa da coletânea Ataque Sonoro, lançada em 1985 pelo selo Ataque Frontal com as bandas Ratos de Porão, Cólera, Lobotomia, Grinders e tantas outras. A arte de capa mostra dois mísseis, um com a insígnia militar dos EUA e outro com a foice e o martelo da URSS caindo, lado a lado, sobre uma representação de São Paulo - ou de qualquer outra cidade do então terceiro mundo (como se chamava naquela época o atual Sul Global).
Os anos 80 marcaram a explosão do punk nacional. Era banda e mulecada arrepiando o cabelo em tudo quanto é canto, como é possível ver no vasto material audivisual e editorial já publicado sobre o início do movimento punk no Brasil. O que acaba sendo pouco falado é a forma como os jovens daquele momento viam o mundo. E uma das principais paranoias-macro daquele dias era com bombas nucleares, que tinham potencial para destruir o planeta por diversas vezes conforme se dizia e que, ainda por cima, poderiam ser acionadas a qualquer momento num contexto de guerra fria.
O "terceiro mundo” era área preferencial para esse tipo de conflito. Uma vasta área do planeta onde a utopia socialista era conhecida do público pela propaganda anticomunista e o progresso capitalista acompanhava botas militares. Não havia futuro.
De lá pra cá passou tanto tempo que esse sentimento de fim iminente mudou e remudou, fazendo com que hoje estejamos num looping parecido com aquele. Chegaram os anos 90, a URSS caiu e o o capitalismo passou a reinar absoluto num mundo em vias de colapsar. Um falso auge civilizacional.
Aparentemente o perigo nuclear tinha se dissipado, as guerras eram feitas por procuração em lugares bem distantes do Norte global e internamente os países “em desenvolvimento” do antigo terceiro mundo poderiam gozar de democracia e liberdades individuais ao mesmo tempo em que novas classes médias prosperavam e se financeirizavam - em processo que legitimava a grande concentração de renda que aumenta exponencialmente a cada relatório da Oxfam, até hoje.
Trinta anos depois o looping nos traria de volta ao sentimento dos anos 70 e 80: pandemia, colapso climático, guerra na Europa, genocídio no Oriente Médio, racismo e segregação nos EUA, ascensão da China como potência global e sua guerra econômica e tecnológica com os EUA em busca do desenvolvimento de novas tecnologias, sobretudo a Inteligência Artificial. E bem, os mísseis seguem apontados pra cá, com violência e a devastação comendo soltas no agora Sul Global - sobretudo aqui no Brasil - em simbiose com a trilionária acumulação de capital em poucas mãos. É o Pânico no Capitalismo Terminal, para parafrasear os Inocentes, outra importante banda paulistana nascida nos anos 80 (e ainda ativa).
O míssil do ecofascismo trumpista
Começamos o ano vendo a adesão de Elon Musk, Mark Zukerberg e demais bilionários da nova classe vetorialista [que controla as novas tecnologias de informação e as grandes redes logísticas] aderindo ao recém empossado governo Trump. À época publiquei o primeiro texto dessa singela newsletter analisando a adesão, que é de duas mãos. Argumentei que o treinamento de Inteligência Artificial, e toda a indústria e energia de que necessita, era o principal ponto em comum entre Rambozo The Clown e o Vale do Silício uma vez que o desenvolvimento e o controle de técnicas sempre esteve vinculado a lógicas de disputa de poder em nível macro ao longo da história humana. Também comentei por aqui sobre a questão das violentas deportações de migrantes latino-americanos, seus efeitos e como isso será lido no âmbito do ecofascismo.
Pois eis que nessa semana o mundo se entretem com o show de Trump sobre um imaginário genocídio branco na África do Sul - com direito a constrangimento do presidente sul-africano em plena visita à Casa Branca - enquanto as principais notícias sobre sua política ficam nos rodapés virtuais. Por exemplo aquelas que mostram os olhos de Rambozo The Clown voltados para a tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai.
A região é famosa pela presença da Usina de Itaipu (uma das maiores hidrelétricas do mundo), pelo comércio em torno da Ponte da Amizade (Ciudad Del Este - Foz do Iguaçu) e pela escalada de atividades criminosas motivadas pelo controle daquela rota para o narcotráfico e o contrabando. Além disso, e muito menos falado, temos acompanhado uma série de conflitos de terras na região que vitimam indígenas do povo Avá-Guarani.
Na segunda-feira (19) o Departamento de Estado dos EUA anunciou recompensas em dinheiro para quem oferecer informações sobre atividades ou pessoas ligadas ao Hezbollah na região de Foz do Iguaçu. A cidade conhecidamente abriga uma numerosa comunidade libanesa, país de origem da organização islâmica que defende o fim do Estado de Israel (outra aresta desse tabuleiro global com o genocídio e a iminente ocupação definitiva de Gaza por Netanyahu). A curta matéria do jornal O Globo sobre o anúncio enfatizou que os valores da recompensa seriam tirados de um fundo específico de cerca de 36 milhões de reais. Quase uma propaganda o jornalismo declaratório, não? Só faltou um “vagas abertas para o cargo de X-9 do Trump”.
E claro, a guerra às drogas não poderia faltar ao combo: “Segundo a Embaixada dos Estados Unidos no Brasil, articuladores do Hezbollah na chamada Tríplice Fronteira recorrem a uma ampla gama de atividades ilícitas para levantar recursos. Entre eles, os investigadores identificaram lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, contrabando de carvão e petróleo, comércio ilegal de diamantes, transporte clandestino de moedas em espécie, cigarros e artigos de luxo, além de falsificação de documentos e cédulas de dólar”, diz trecho da matéria.
A cascata trumpista veio logo depois de o governo brasileiro negar a inclusão das facções criminosas nacionais em lista de organizações terroristas. Para os EUA é interessante que isso seja feito, provavelmente para encaminhar um novo plano de militarização goela abaixo dos brasileiros, como o Plano Mérida (México) e o Plano Colômbia que, ao contrário do que propagaram, deixaram seus países mais brutais na medida em que os encheram de milicos e armas. Não é que já não tenhamos uma sociedade militarizada, mas tudo sempre pode piorar no terceiro mundo, como vimos semana passada no texto publicado sobre Mianmar. E, no fim das contas é tudo business…
… tanto que o governo brasleiro respondeu não ver sentido na classificação de PCC, Comando Vermelho etc. como “organizações terroristas” pois o crime organizado brasileiro funciona como uma grande empresa capitalista, que visa exclusivamente o lucro, sem grandes pretensões políticas, étnicas ou religiosas. Tal descrição não se enquadra na definição de terrorismo da lei brasileira. Quem não perdeu tempo foi o deputado autoexilado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que já começou sua campanha em favor dos interesses trumpistas acerca do tema e ainda sugeriu que os EUA envie imigrantes brasileiros (supostamente) ligados às facções para a nova prisão de Bukele, em El Salvador, construída em oferta à política ecofascista anti-imigração dos EUA.
De um lado, cascata para divertir internautas identificados com a dita “extrema direita” e agitar o mercado de ideias dos meios de incomunicação e das redes antissociais. De outro, está pronto o subterfúgio para encher a tríplice fronteira de dólares para mais armas e militares: terrorismo internacional, crime organizado, drogas, fronteira. Os planos México, Colômbia e a própria militarização brasileira nas últimas décadas que o digam.
Mas um ato falho do próprio secretário de Estado dos EUA revelou os interesses por trás da região na terça-feira (20) durante audiência no Senado americano. Marco Rubio discursava para os senadores quando sugeriu que o excedente de energia elétrica produzida em Itaipu fosse direcionada para o treinamento de Inteligência Artificial. “O Paraguai estava em um acordo de longo prazo com o Brasil, esse negócio agora expirou e eles estão tentando descobrir o que fazer com 50% de eletricidade gerada pela hidrelétrica que não vão mais para o Brasil. Alguém, se for inteligente, vai descer para o Paraguai e abrir uma indústria de IA”, declarou.
Itaipu é uma das maiores hidrelétricas do mundo e administrada conjuntamente por Brasil e Paraguai, além de central para a economia paraguaia. O acordo a que Marco Rubio se referiu é sobre os excedentes dos 50% da produção a que o Paraguai tem direito e nem sempre usa por inteiro. É tudo o que Musk e Zuckerberg querem além, é claro, do lítio da Bolívia, do ouro da Amazônia y otras cositas más.
O míssil do capitalismo de Estado
Olhamos para o norte e vemos ingerência, colonialismo e ecofascismo. Sob seu sistema temos uma sociedade totalmente dependente e subjugada por empresas de tecnologia e logística, para além das especificidades locais (que no Brasil incluem conflitos por terra, violência de Estado, entre outros). Mas ao entramos num Tik Tok da vida para mirar na direção do oriente, veremos uma potência recém surgida e que se apresenta atualmente de uma forma mais pragmática e menos brutalizante que Trump e o Tio Sam. É a China que chegou no pedaço!
Uma China reformada para ser governada como capitalismo de Estado (para me apropriar da maneira como Florestan Fernandes caracterizava a URSS) por um Partido Comunista que desenvolveu um sistema de meritocracia muito mais eficiente do que aquele prometido pelo Ocidente.
De início o efeito é incrível. 5G e IA rodando muito melhor que as dos gringos. Um banho na guerra comercial/tecnológica. Nas redes, campo de batalha do soft power, vídeos ironizam os EUA e sua pretensão de grandeza oriunda do destino manifesto em contradição com a desindustrialização e graves problemas de saúde pública enfrentados pelos estadunidenses como obesidade e depressão. É bem feito, e mexe com nosso sentimento antiimperialista.
E eis que o presidente Lula se aproxima da China, que já é um importantíssimo parceiro comercial do Brasil, visita seu país nesse mês, e na pauta estão investimentos bilionário para a construção da Ferrovia Bioceânica (EF-354), que pretende ligar o porto Chancay (Peru) ao porto de Ilhéus (Bahia), cruzando a Amazônia por Acre, Rondônia e Tocantins, esbarrando no oeste e suldo Amazonas. Com o objetivo de facilitar o escoamento da produção, trata-se de mais uma obra de interesse do agronegócio e de outros setores extrativistas, como a mineração.
Da parte da China, que é compradora da soja brasileira e de outras produções sulamericanas, o principal interesse é no porto de Chancay. Os chineses teriam desembolsado 1,3 bilhões de dólares para construí-lo segundo informações disponíveis na imprensa, mas seu sucesso dependeria da ligação com o Brasil. Antes de embarcar com Lula para visitar Xi Jinping, a ministra Simone Tebet (Planejamento e Orçamento; oriunda do setor agropecuário do MS) apareceu nos meios de comunicação comemorando o possível aporte chinês: “A China vai rasgar o Brasil com ferrovias”. E tome jornalismo declaratório.
Mas melhor verbo não poderia ter sido usado. De fato, será um rasgo, os impactos ambientais são incalculáveis num Brasil que não pode mais se dar ao luxo de perder áreas naturais como se o colapso climático não estivesse em curso. Um ano atrás o Rio Grande do Sul estava debaixo d’água, Maceió afundando e a Vale escapando de responsbilização por Mariana e Brumadinho.
Uma ferrovia - e especialmente uma desse porte - exige uma rodovia paralela para manutenção, então podemos imaginar o quão faraônica seria a Bioceânica. O problema é que quando se abrem essas vias em áreas intocadas, verificamos o chamado “efeito espinha de peixe”, do qual falamos nessa newsletter nos artigos sobre a Ferrogrão e a BR-319. Tocando em miúdos, ocorre o seguinte: a estrada é aberta numa área natural (a espinha de peixe). Com o acesso facilitado começa a haver ocupação humana nos moldes convencionais ao capitalismo tardio. Estradas vicinais são abertas (fazendo com que a estrada se pareça com uma espinha de peixe ao ser vista do alto), vilas precárias construídas aos montes e, pela mesma rota do suposto progresso, também acessam a área grileiros de terras, que irão promover desmatamento para a criação de gado, e garimpeiros, que encontram facilidades para o transporte de seu maquinário e infraestrutura.
Apesar da roupagem progressista (no sentido de progresso mesmo, sem conotação político-eleitoral-midiática), “rasgar o Brasil com trens” é quase “progress washing” do agronegócio com dinheiro chinês. A Bioceânica já era sonhada desde o pós-guerra, mas ganhou força em 2014, quando Brasil, Peru e China fecharam um acordo para tirá-la do papel. Era também a época do Plano IIRSA* e da chuva de hidrelétricas nas bacias do Xingu (Belo Monte) e do Tapajós.
Se a ferrovia sair do papel, pode apostar, a temperatura vai subir. Literalmente. Para não falar de diversos conflitos de terras derivados do efeito espinha de peixe que devem pipocar nos interiores do norte do Acre e oeste do Amazonas, justamente o quadrante mais preservado da Amazônia brasileira. Aquele de que dependemos todos para que siga existindo algum regime de chuvas por aqui.
Entre atiçar o campismo cibernético e lidar com o pânico no capitalismo terminal, fico com o segundo. Ou, como diria o Restos de Nada (primeira banda punk do Brasil): “nós não gostamos de nada, nada, porque não há mais nada para gostar”. Segue atual.
*Plano IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) é um projeto de desenvolvimento regional que visa conectar as economias sul-americanas através de projetos de transporte, energia e telecomunicações.
Massacre de Paraisópolis no Le Monde Diplomatique - Parte 2
Saiu a segunda parte da cobertura das audiências de instrução do Massacre da DZ7, em Paraisópolis (dezembro de 2019). Dessa vez trago uma entrevista com a professora Desirée Azevedo, antropóloga e coordenadora do projeto Os 9 que Perdemos do CAAF-Unifesp que contou os bastidores da investigação defensiva feita em parceria com as famílias das vítimas, a Defensoria Pública e o MP. Foi graças a esse trabalho que o episódio não foi arquivado e posteriormente esquecido. Ela também falou sobre as possibilidades dos réus irem a júri popular, entre outros aspectos mais técnicos e jurídicos que envolvem a matança.
Se você também quer saber mais sobre o massacre em si e toda a sua dimensão social, o que inclui o luto e a luta das mães e familiares das vítimas, recomendo a leitura da primeira matéria: “É descabido sentar diante de um juiz e ouvir policiais repetirem mentiras já desmascaradas”
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