Yangon Calling
Na capital de Mianmar os artistas fazem a linha de frente contra a brutal ditadura militar que ali se instalou. Precisam se esconder, fugir do país, para as florestas ou morrem. Entrevistei um deles
Mianmar é um país interessante, encravado no Sudeste da Ásia entre as gigantes China e Índia, repleto de montanhas e florestas tropicais. Já foi chamado de Birmânia ou Burma, especialmente na época em que sofria a brutal colonização do Reino Unido. Uma vez independente, vive sucessivos golpes e golpes dentro de golpes dados pelos militares do país, que controlam tudo: desde o cu alheio até as petrolíferas, mineradoras e, claro, as armas. A desculpa é uma espécie de guerra permanente entre a etnia dominante, que habita a região da capital Yangon, e os exércitos de outros povos que habitam o interior daquele mesmo território.
Mas mesmo na capital Yangon há resistência. Uma forte cena cultural jovem e marginal, composta por punks, rappers e uma série de outras contraculturas urbanas, se coloca na linha de frente contra a ditadura, ora denunciando seus crimes para o exterior, ora revertendo fundos obtidos em shows clandestinos e campanhas de solidariedade para dar suporte a perseguidos políticos - em muitos casos ajudando-os a deixar o país. Também organizam campanhas de arrecadação de alimentos para pessoas atingidas por tragédias naturais e que acabam abandonadas ao além.
Geralmente essa vida militante é um tanto curta. No fim das contas esses artistas - mesmo longe de pegar em armas - são obrigados a viver escondidos em Yangon, se juntarem às guerrilhas nas florestas ou saírem do país, caso contrário acabam presos e mortos pelos militares. Entrevistei um deles, Kyaw Kyaw (se pronuncia algo como “tchou-tchou”), vocalista da banda punk The Rebel Riot.
Ele chegou a ser citado numa publicação alemã como uma espécie de “símbolo da resistência pela democracia em Mianmar”. Quando perguntei o que achava do título, deu risada. Disse que está longe disso, que é apenas um sujeito que faz o seu som e tenta ajudar na medida do possível aqueles que buscam viver melhor.
A partir da sua música My Buddah is a Punk, também falou sobre o budismo, principal religião de Mianmar. Disse que a sociedade budista não vê com maus olhos os punks e rappers em si, mas condenam seu ímpeto em mudar a realidade. Ainda aponta que os militares usam essa característica à seu favor mas que, por outro lado, se visto como uma espécie de prática filosófica, o budismo pode - e deve - ser diferente. Pelo que entendi, a eterna busca pela paz, sabedoria e pelo aperfeiçoamento geral também pode englobar, segundo Kyaw Kyaw, o questionamento à autoridade e as mudanças políticas e sociais - “revolução dentro e fora da gente,” definiu. Aproveitei a deixa para falar um pouco do Brasil e dos crentes malucos que existem por aqui. A conversa teve quase duas horas gravadas.
O cara tem a minha idade e é tão gente fina que tinha momentos que me esquecia que ele era birmanês e soltava umas frases em português. Aprendeu algumas sem querer. Mas há uma outra dimensão dessa entrevista que é impactante. E é justamente o seu relato acerca do cotidiano de Yangon após o golpe de Estado de 2021 - aquele em que os tanques foram filmados, sem querer, por uma influencer fitness.
Kyaw Kyaw explica que antes do golpe, entre 2010 e 2021, viveu-se uma democracia aparente em Yangon (no interior a matança já comia solta como veremos a seguir), mas que nos últimos anos a vida se tornou uma loteria se você for, em algum nível, crítico dos militares. Você pode ir para o trabalho e ter um dia normal sem que ninguém te incomode, ou você pode ter entrado numa lista de procurados do regime e simplesmente desaparecer. Nunca se sabe.
E isso aconteceu com o entrevistado, que falava comigo já de outro país. Contou que seu nome entrou na lista dos milicos dias depois que tinha saído. Foi avisado já longe e, se já não tinha planos de regressar tão cedo, agora menos ainda. Mas isso é duro. Dói na alma. E mesmo com seus sorrisos e bom humor, era possível sentir sua algo da dor pelo semblante que aparecia na câmera do celular.
Quando perguntado a respeito da músca Spring Nightmare, que abre o To Dear… Comrade (último disco, de 2024), o punk se emocionou. A música em si é emocionante - e desesperadora. Não tem letra. É um instrumental agressivo e melancólico enquanto as vozes são compostas por gravações de protestos, de discursos, falas - fazendo referência ao fato de estas pessoas não estarem mais presentes. A seguir, leia a mensagem deixada no Bandcamp da banda exatamente na postagem de Spring Nightmare - título que faz referência ao golpe de 2021.
TO DEAR… COMRADE (2024)
SPRING NGHTMARE
Nossa nova música instrumental foi lançada para os três anos do golpe militar nesse país, Mianmar. Essa música se chama “Spring Nightmare” (sugerimos que a ouça com fones de ouvido).
Criamos esse instrumental envolvendo as vozes da revolução popular contra a ditadura militar de 2021 de todas as formas diferentes com a música. Panelas e frigideiras batendo, gritos de guerra, tiros, gritos, ódio e raiva, os sons dos traumas de nosso povo e as memórias dolorosas que nunca poderão ser esquecidas.
O objetivo de criar essa música é que, às vezes, em uma revolução, podemos ter sangue frio e esquecer a revolução. Ouvir as vozes do passado, que todos nós lutamos juntos, pode nos conscientizar das situações atuais e da lembrança dos companheiros que perderam suas vidas, companheiros que estão sendo presos.
Durante esses três anos, as pessoas estão sendo mortas, detidas, presas, as famílias estão separadas, os negócios estão falindo e o país inteiro está em apuros.
A política de Mianmar não está sendo mostrada com frequência na mídia mundial devido às questões da Rússia contra a Ucrânia e do Hamas contra Israel, mas os movimentos revolucionários contra a ditadura, de várias formas e em diferentes lugares, continuam a crescer.
Respeitamos e honramos todos e cada um dos camaradas que estão participando dessa revolução sem vacilar até agora...
Precisamos vencer essa luta! ✊️✊️✊️
Tentei resumir a conversa em poucas palavras. A entrevista ainda não foi transcrita e só será publicada na próxima edição impressa do ERRO ZINE. O que posso adiantar por hora, é:
Uma breve história de Mianmar (e de sua resistência cultural)
O texto a seguir deriva de uma pesquisa do Felipe Valium publicada em forma de documentário para o canal da Aetia Editorial no YouTube com o título “Punks e rappers contra um exército; música underground em Mianmar”. Agradeço demais ao autor, que gentilmente cedeu seu material para a produção desse texto. Além disso, também fiz algumas pesquisas próprias e chequei informações que em primeiro momento me pareciam fora do lugar.
Logo no início ele cita o livro “Vivendo em silêncio”, que conta como o governo militar birmanês usa a imposição da moral budista para manter seu poder e controlar a população. O budismo é religião majoritária em 6 países que fazem fronteira entre si e formam uma região com grande afinidade cultural: Camboja, Tailândia, Mianmar, Sri Lanka, Laos e Mongólia. Tendo o autocontrole, a compaixão e a sabedoria como elementos principais, a religião expressa o silêncio, a discrição e a contemplação do mundo como ele é como virtudes dos povos que a praticam. E isso, convenhamos, não é exatamente correspondente à cultura punk.
Além disso, em 4 dos 6 países budistas a classe militar se aproveitou do pacifismo da população para impor suas ditaduras e tomar tudo o que lhes fosse possível. Dentre elas, a história mais visceral é a de Mianmar que, desde a sua independência em 1945 vive basicamente sob regimes militares, a exceção de breves hiatos. Os militares são donos de tudo. Desde grandes empresas, mineradoras e o agro local, até o governo e o próprio Estado.
Durante a ocupação britânica (1824-1948), Mianmar se chamava Birmânia. Tratava-se do território ao redor da atual capital e principal cidade, Yangon, que abarcava diversos povos de várias religiões, línguas e culturas. Na prática, os ingleses criaram um grande país, reunindo naquele território todos esses povos, que já tinham seus problemas e conflitos pregressos. Ao conseguir sua independência e tornar-se um novo Estado-nação, tenderia a uma política de unificação em torno da população dominante: a etnia Biamar, que fala o birmanês e vive na região da capital.
Todo Estado-nação passou por processo semelhante, e a supressão das identidades e culturas não dominantes é basicamente o que garante num primeiro momento a unidade territorial, política, linguística, militar e cultural dos mesmos. Para além de discursos, nenhum Estado foi construído sobre bases de solidariedade ou altruísmo.
Por outro lado, boa parte do país é composta por densas florestas tropicais e montanhas, o que dificultou a entrada dos próprios colonizadores outrora e permitiu com que os outros povos da região vivessem com relativa autonomia. Esses povos nunca aceitaram a centralidade dos biamar de Yangon, ou da sua religião, o budismo, como referência nacional. Há povos que querem seus próprios países, há povos que só querem viver em paz. Mas a realidade, como veremos, é de puro terror.
No meio desse caldo de animosidades, foi o exército birmanês quem conseguiu sair na frente na busca por alguma coesão social. Em 1945, no contexto da Segunda Guerra Mundial, os birmaneses conseguiram formar o Tatmadaw (exército) e expulsaram os ingleses com auxílio do Império do Japão. Foram cerca de três anos de combates intensos, que terminaram em 1948 e elevaram o status de ‘pequeno exército desorganizado’ do Tatmadaw para o de ‘forças experientes’, além de conferir moral para com a população e atrair o interesse de exércitos estrangeiros em vendê-los armas e treinamentos. Assim, quando foi declarada a independência, mesmo o país vivendo uma democracia parlamentar de forma oficial, os militares se sentiram donos de tudo.
Nesse bojo, transformaram o Tatmadaw numa espécie de grupo financeiro com o objetivo de reverter os lucros de diversos setores da economia para o abastecimento dos batalhões e unidades em nome da soberania nacional. Assim passaram a controlar basicamente todos os setores da economia, incluindo os de larga escala. É de se imaginar que não demoraria para quebrar o país, como aconteceu - imagine um Pazuello-da-vida sendo o manda-chuva de qualquer grande setor da economia, sei lá, o de saúde por exemplo. Também é de se imaginar que o nepotismo comia solto nos altos cargos governamentais. E haja camarão, doce de leite e próteses penianas em Yangon.
Em 1958, quando já dominavam a economia birmanesa, os militares colocaram o primeiro-ministro U Nu contra a parede e deram o primeiro golpe de estado da história independente de Mianmar. Sua desculpa era de que a democracia era lenta para os negócios e soluções de que o país necessitava. Uma dessas soluções, como em toda gênese de Estado-nação, era demarcar as fronteiras nos rincões. E isso foi feito pelos militares, causando diversos genocídios de povos outrora livres nas florestas e montanhas. O mais famoso deles é o genocídio dos Rohingya, que obteve ampla cobertura midiática a partir de 2016. Eles fugiram em massa para Bangladesh, cerca de 700 mil pessoas, enquanto suas vilas eram incendiadas pelo Tatmadaw. Mas esse foi só um dos povos atacados, a prática é registrada desde os anos 1950 e de forma generalizada nesses rincões.
Basicamente os militares buscaram moldar o país à sua maneira. Expulsam esses povos dos seus territórios originais com avisos de 12 a 24 horas do momento em que os buscariam em caminhões. Sem poder levar seus pertences, são despejados a centenas de quilômetros, em muitos casos do lado de fora das fronteiras do país. Quem não quer sair pode ter a vila incendiada, parentes e vizinhos (ou si próprio) fuzilados ou assiste a estupros usados como arma para desmoralização da comunidade.
Em 1960 os militares prometem convocar eleições em fevereiro, que são vencidas por uma coalizão de esquerda, com U Nu à cabeça do parlamento. Contra todos os prognósticos. Mas U Nu, budista de carteirinha, resolveu usar seu mandato para declarar o budismo como religião de Estado ao invés de criar freios para os militares. Favoreceu a classe dos monges e deu o recado à população de que protestar não era algo interessante. Paralelamente irritou ainda mais as minorias já perseguidas que seguem outras religiões, especialmente o islamismo e o cristianismo. Essas minorias começaram a se organizar como uma resistência armada contra a coerção do Estado de Mianmar.
Anos depois o problema escalou. A dominação dos birmaneses sobre os outros povos estava posta em xeque e a classe política não encontrava soluções pacíficas. Os militares então deram um novo golpe, prometendo ‘colocar ordem na casa’. Todos os membros do governo foram presos.
Com a classe política presa e os monges recolhidos aos seus templos, os militares praticaram uma sangrenta ditadura militar. Em 1988, quando o país sofria com a miséria e a opressão derivadas do regime, uma onda de protestos populares apelidados de 8888 Uprising ou “Levante do Poder do Povo”, tomou a capital Yangon e outras localidades. Iniciados em agosto, os protestos terminariam em 18 de setembro daquele ano com um novo e ainda mais sangrento golpe de estado, iniciado com uma repressão a tiros de fuzil contra os manifestantes. Foram 350 mortes de acordo com as autoridades. A população fala em milhares de executados em praça pública.
Como é possível observar em quaisquer imagens disponíveis na internet, é comum que qualquer protesto pacífico de estudantes seja recebido pelos militares com uma chuva de bombas de gás e saraivadas de balas - as letais mesmo (não que as “não-letais” não o sejam, outra discussão). Imagine então como seria recebida uma segunda mega onda de protestos apelidada de “Revolução Açafrão” ocorrida entre 2007 e 2008 que recebeu a inédita adesão dos monges após mais de 40 anos de silêncio nos templos. Pedia por democracia. E novamente terminou massacrada pelo exército, com monges espancados publicamente e centenas/milhares de manifestantes mortos. A banda The Rebel Riot, por exemplo, se conheceu durante esses protestos e foi batizada em homenagem a eles.
A repressão sangrente não pegou bem. Houve pressão e dois anos depois os militares aceitaram governar em parceria com um parlamento civil, sem que saíssem de fato do poder. Foi esse o momento de democracia em Yangon, com algumas liberdades civis garantidas aos citadinos, e barbárie e genocídio no interior. Foi nesse período que Ciaw Ciaw e outros jovens forteleceram os movimentos culturais e podiam gravar e tocar com alguma liberdade.
Mas o novo arranjo do Estado de Mianmar só duraria até fevereiro de 2021, quando a Aang San Suu Kyi, a última primeira-ministra (2018-2021), foi deposta pelo mais recente golpe militar do país, o Pesadelo da Primavera (Spring Nightmare).
Nesse contexto todo, a partir dos anos 90 a principal linha de frente contra a tirania em Yangon, que denuncia o regime militar de Mianmar para o mundo, são músicos e artistas. É relativamente comum ouvir relatos de músicos sequestrados e/ou mortos pelo Exército hoje, em 2025.
Zei Yar Thaw, um dos primeiros rappers locais, vocalista do grupo Acid que praticamente criou o estilo no país durante os anos 90, foi preso pela primeira vez na época da Revolução Açafrão enquanto jantava num restaurante em Yangon com amigos, acusado de envolvimento no movimento pró-democracia. Após cinco anos preso, tornou-se de fato um ativista político e acabou preso novamente por diversas vezes sob falsas acusações que iam de crimes comuns a terrorismo.
Preso pela última vez em 2021, num contexto pós golpe em que os milicos queriam mostrar serviço para os superiores e para a sociedade, foi acusado de planejar ataques contra a Junta Militar e condenado à morte em janeiro de 2022. Em julho daquele ano foi fuzilado ao lado de outros ativistas. Tornou-se um símbolo para a juventude local e sua morte bárbara fez com que o hip hop se multiplicasse no país.
Os integrantes remanescentes do Acid fugiam de Mianmar enquanto uma nova geração de rappers tomava as ruas e popularizava a música Kabar Makyay Bu (Não seremos esquecidos), escrita por Zei Yar Thaw. Tornou-se a música da revolta contra o estado de coisas por lá.
ERRO ZINE
A entrevista completa, assim como os detalhes dessa história vão sair apenas na segunda edição do ERRO ZINE, entre julho e agosto. Você pode colaborar com a publicação adquirindo a primeira edição!! Essa ajuda é muito importante para cobrir os custos de impressão! Fortaleça!
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