Amapá na mira: o 'know how da Vale' nas mãos de garimpeiros e a exploração da Margem Equatorial
Foi noticiado o rompimento de uma barragem no AP (ao estilo Mariana-Brumadinho) de mina operada pelo garimpo na mesma semana em que Lula desautorizou o Ibama por lobby petroleiro na Amazônia
Antes de irmos para o assunto da semana (e talvez de nossas vidas), dois breves recados.
Rápido arrodeio: Na quinta-feira (13 de fevereiro), terminava essas páginas de prontidão para ir buscar as fotos da festa de homologação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Tinha prometido, sobretudo para as crianças que cantaram no coral e jogaram futebol, que levaria essas fotos ao território. Demorou, mas deu certo. Agradeço aos amigos que ajudaram a breve vaquinha e a Conexprint Campeche pelo generoso desconto alcançado. Serão levadas 20 fotografias para os Guarani MBya da Grande Florianópolis sobre um dos momentos mais importantes da sua luta, o da vitória. Uma longa matéria (textão mesmo) ainda está sendo elaborada para contar a história da luta pela terra e a posterior ocupação da Dsei por indígenas dissidentes das lideranças locais vigentes. Dada a dificuldade na venda de frilas registrada nesse início de 2025, ainda não sei onde o trabalho ficará disponível. Vou contando pra vocês. Se tiverem alguma sugestão, estou aceitando.
Segundo arrodeio: como alguns de vocês já sabem, estou acompanhando o caso do Massacre da Dz7, em Paraisópolis. E se eu estou tendo dificuldades para publicar o material que tenho produzido, imagine as dificuldades das mães das vítimas ao longo de todo esse período. Nessa manhã, a Cristina, mãe do Denys Henrique, entrou em contato pedindo uma ajuda na divulgação da vaquinha que está fazendo para financiar sua luta por justiça. Reproduzo suas palavras abaixo.
“Campanha permanente de solidariedade
Sou Cris, mãe de Denys Henrique, um dos nove jovens assassinados no Massacre de Paraisópolis. Desde aquele dia, minha vida tem sido uma luta constante por memória, justiça e reparação.
Além de ser pesquisadora no CAAF, estou estruturando o Bazar da Resistência na Zona Leste, um espaço que vai garantir meu sustento e fortalecer essa luta tão necessária.
Para que isso aconteça, preciso me mudar de volta para a região e seguir enfrentando muitas dificuldades financeiras. Essa campanha permanente de doações via Pix é a alternativa que encontrei para reorganizar minha vida, pagar dívidas e viabilizar o funcionamento do bazar.
O valor arrecadado vai me ajudar na mudança, na locação da casa e, ao mesmo tempo, permitir que eu continue na luta pela vida.
Se puder contribuir, qualquer valor faz a diferença!
↪️ Pix: 18861157882
Agradeço de coração a quem puder me apoiar. Sigo sendo Resistência!”
A notícia da semana foi, infelizmente, uma pequena nota de rodapé publicada terça-feira (11) no Uol. Trata-se do rompimento de uma barragem de rejeitos de mina operada pelo garimpo em Porto Grande, no interior do Amapá. A prefeitura decretou calamidade. Vídeos compartilhados nas redes antissociais mostram rios completamente barrentos, dando a impressão de que o rompimento seguiu um roteiro semelhante ao de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais. Não há informações sobre as proporções do rompimento ou sobre mortos e feridos, apenas a menção genérica de que o crime ambiental atingiu comunidades ribeirinhas.
No decreto de calamidade da prefeitura é informado que a operação da barragem era realizada por “empresa desconhecida”. Waldez Góes, ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, afirmou nas redes antissociais que se tratava de uma área de garimpo. Segundo a reportagem, os rios Amapari e Araguari [fundamentais para a região; Porto Grande está localizado no encontro entre ambos] foram atingidos pelos rejeitos e toda a região ficou sem água.
Porto Grande está na zona central do Amapá. Criado em primeiro de maio de 1992 com 4,4 mil km2 de área, o município abriga uma população de 23 mil habitantes segundo estimativa de 2021. Estamos falando de um jovem, pequeno e desconhecido município amapaense. É assustador imaginarmos quantas barragens dessa não existem por toda a Amazônia, operadas seja pelas mineradoras legalizadas como a Vale, que gabaritou os grandes rompimentos de barragens até agora, ou por garimpeiros de operação ilegal.
Mas a mineração e o garimpo não são os únicos agentes do apocalipse que deram as caras nos últimos dias no Amapá. A indústria do petróleo também apareceu. E para surpresa e revolta de muita gente, na figura do presidente Lula.
Na quarta-feira (12), o petista atacou o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama), um órgão federal técnico, pressionando por uma autorização para a Petrobrás explorar petróleo perfurando poços na Bacia da Foz do Amazonas, na Margem Equatorial do litoral do Amapá. Ambientalistas questionam a proposta pelos óbvios e colossais danos ambientais que a exploração da área poderá causar, especialmente nos ecossistemas marinhos da região, num momento em que o aquecimento dos oceanos preocupa todo o planeta.
“Não é que vou mandar explorar, eu quero que seja explorado. Agora, antes de explorar, temos que pesquisar, temos que ver se tem petróleo, a quantidade de petróleo, porque muitas vezes você cava um buraco de 2 mil metros de profundidade e não encontra o que imaginava. Talvez na semana que vem, ou nesta semana haja uma reunião com a Casa Civil, com o Ibama e precisamos autorizar que a Petrobrás faça a pesquisa. Só depois que a gente vai explorar. O que não dá é pra ficar esse lenga-lenga, o Ibama é um órgão do governo parecendo que é um órgão contra o governo”, disse Lula.
Há uma série de camadas dessa fala presidencial que acabam mostrando como certos aspectos da questão vêm sendo privilegiados em detrimento da preservação dos importantes ecossistemas marítimos da Amazônia. E aqui entra uma crítica ao chamado “progressismo” da esquerda institucional brasileira que tenta reeditar o desenvolvimentismo como motor econômico esquecendo-se dos já avançados debates científicos, sociais, econômicos e políticos, em nível planetário, sobre a necessidade de uma transição energética e ecológica que não seja para inglês ver. Ou melhor, que deixe os combustíveis fósseis nas entranhas do planeta, não na atmosfera.
A primeira camada foi identificada em matéria do portal Sul21 [linkada acima] a partir de um plano estratégico da Petrobrás previsto para o período 2024-2028, com investimentos de 3 bilhões de dólares para perfurar 16 poços na Margem Equatorial. Só dois têm permissão do Ibama, ambos na Bacia Potiguar, no RN. Dos 11 restantes, 6 estão em processo de devolução, ou seja, não há petróleo em quantidades rentáveis para exploração, e outros 5 foram considerados poços de pequena produtividade. Daí a pressão sobre o Ibama pelas novas perfurações. É de interesse da estatal e todo o setor neodesenvolvimentista colocar novos poços de petróleo para funcionar. A questão socioambiental, acreditam, ‘é possível remediar’ com grana e tecnologia.
A Margem Equatorial abrange cinco bacias em alto-mar, entre os estados do Amapá e do Rio Grande do Norte. A Bacia da Foz do Amazonas é uma delas e já teve uma licença para prospecção marítima negada em 2023. Á época, o Ibama alegou não haver condições técnicas para uma operação segura. Entre os problemas, apontou carências nos planos para proteção à fauna.
No vídeo abaixo, o ambientalista Rodolfo Salm, conhecido de longa data, colunista do glorioso Correio da Cidadadania, professor da UFPA em Altamira e antigo militante contrário a construção de Belo Monte, explica esses impactos ambientais e sociais à luz da troca de comando da Petrobrás ocorrida em 2024. Participam da conversa Telma Monteiro, Gabriel Brito e eu.
Nas imagens, Telma Monteiro (uma das principais estudiosas dos impacto ambientais da Ferrogrão, que será assunto por aqui em breve) explica a mudança na direção da Petrobrás que ocorreu em 2024 e reacendeu o debate sobre a Margem Equatorial.
Para além da questão dos dividendos extraordinários que ganhou a atenção dos meios de incomunicação à época da fritura de Jean Paul Prates, Telma mostra que o ex-mandatário da estatal tentava conter os interesses do ‘mercado’ na estatal, o que incluía a expansão da empresa para a Bacia da Foz do Amazonas. Magda Chambriard, que o substituiu após sua ‘longa crise’ com o ‘mercado’ e a imprensa’, é absolutamente favorável a essa exploração.
“Há uma diversidade muito rica, há povos tradicionais ali, dezenas. Trata-se de microbioma muito rico que se for alterado por ocasião de um vazamento, por exemplo, vai criar impactos permanentes”, completa Telma Monteiro, que vaticina: “Magda não está preocupada com as questões ambientais. Ela está preocupada com uma transição energética, que não é transição energética de verdade”.
Telma se refere ao discurso de que a Petrobrás financiaria a suposta ‘transição energética brasileira’ com o dinheiro proveniente dessa inédita exploração petroleira. Na prática a narrativa diz, sem fazer sentido algum, que "vamos queimar mais combustíveis fósseis para que paremos de queimar combustíveis um dia”. Não se sabe que dia exatamente, não há metas nem prazos, e a situação é de urgência imediata: é preciso parar as máquinas.
É importante lembrar do que se falava sobre o Pré-Sal sob esse mesmo prisma, pois estamos vendo uma repetição de discursos. À época a desculpa para a perfuração da Bacia de Campos era de que usaríamos os royalties do petróleo para desenvolver o país, financiando nossa educação pública de base, o ensino superior, a ciência e a tecnologia. Até hoje o Brasil aguarda esse “boom da educação”. Na prática, o Pré-Sal foi perfurado e as políticas para ciência e educação, desde então, são de ajuste, arrocho e austeridade. Em todos os níveis, salvo raríssimas exceções.
E aí entra a segunda camada da fala de Lula, que terá uma relação dupla com a própria forma como se faz política no Brasil.
O primeiro elemento dessa relação dupla é o apoio que parlamentares da região podem dar ou não ao governo. Há um forte interesse das elites locais na exploração desse petróleo, pois as chances de desfrutar dos royalties aumentam. E seus políticos os representam nas instituições. O senador Randolfe Rodrigues, importante figura aliada ao governo, não me deixa mentir. Mas há aqueles do outro lado do espectro político também.
A impressão que dá é que para Lula, Randolfe e a classe política como um todo, impera uma espécie de pensamento mágico de que seria possível fazer essa exploração ao mesmo tempo que se garantiriam planos de proteção da fauna e de contingência para vazamentos e acidentes. Seria mais fácil se isso fosse possível. Não é.
Esse é o segundo elemento da relação dupla: a velha ideia de que ‘todos podem sair ganhando’. Se isso não deu certo na conciliação de classes, entre seres humanos, é claro que não dará em relação a capital e meio ambiente. Em outras palavras, é falsa a máxima de que ‘a natureza se regenera’, logo, o ‘progresso’ deve chegar a qualquer custo. Esse pensamento está pelo menos meio século atrasado; às favas com os ‘progressistas’! Além disso, há certo consenso entre ambientalistas, cientistas e povos nesse sentido, enquanto o “outro lado” fica por conta dos interesses econômicos que movem países poderosos e seus sistemas políticos.
Mas as florestas não têm nada com isso e precisam estar em pé. E os seus povos originários e tradicionais precisam estar vivos e livres de ameaças externas para que possam mantê-las. E isso não é política, no sentido de que não há uma negociação aqui, e nem deveria haver.
Falamos de uma necessidade fisiológica coletiva, afinal, todos precisaremos respirar nos próximos anos. Não dará para simplesmente ‘não respirar’ caso o balão de oxigênio esteja muito caro na gôndola do supermercado em 2050.
E nesse sentido a obrigação da classe política, se é que pretende ‘governar para todos’ como diz em toda e qualquer campanha eleitoral, não é negociar nada, mas viabilizar a preservação dessas florestas. O parâmetro é outro, está muito além da pequena política a que estamos acostumados.
E aqui esbarramos, mais uma vez, no pensamento mágico do capitalismo, em crítica genial elaborada por Davi Kopenawa e descrita com maestria por Ailton Krenak numa edição do Roda Viva em pleno 2021 pandêmico:
“O abismo cognitivo foi instalado quando todos nós vimos que as coisas podem ser reproduzidas em série e que a caixinha do leite ou qualquer outro produto que está na gôndola do supermercado. Aquela coisa apareceu ali (...) e não importa mais o processo. Então a caixinha de leite e toda essa facilidade da gôndola seriam coisas que aparecem na sua cara e você pode simplesmente consumir. É isso que o Davi Kopenawa Yanomami, nessa sua prospecção do mundo do branco que ele olha de dentro da floresta, dirá que é o ‘mundo da mercadoria’. Vamos imaginar que esse mundo da mercadoria é mágico. Ele faz aparecer água na torneira, leite na caixinha e coisas na gôndola. Quer dizer, é um pensamento mágico o desse mundo subalterno à ordem capitalista. É tão mágico quanto o pensamento de um xamã. O pensamento mágico de um escravo do capitalismo é tão fantástico que ele acredita que o capitalismo pode acabar com o mundo e criar outro. Eu me pergunto: por que um cara vai financiar o envio de um foguete para o espaço? (…) Perdemos a prioridade. Nesse mundo mágico do capitalismo, tudo pode. A Terra, inclusive, se acabar tem outra."
Primeira edição do Erro Zine está quase pronta - SPOILER
Para finalizar a conversa dessa semana, gostaria de anunciar que a última matéria da primeira edição do Erro Zine está pronta e agora começo a encaminhar a finalização da montagem, revisão, impressão e lançamento da publicação.
O Erro Zine (publicação) tem um caráter mais cultural, apesar de também tratar do social e do político. Seu objetivo é ser um bom fanzine para leitura e divulgação de projetos e cenas que não têm espaço nos meios ou nas redes.
O fanzine terá 20 páginas e essa primeira edição estará disponível gratuitamente no formato digital para todos os assinantes dessa singela newsletter - a partir do segundo número a gratuidade ficará só para os assinantes pagos. A edição impressa estará à venda com o intuito de financiar o meu trabalho.
As principais matérias dessa edição são: 1. entrevista diretamente do Alto José do |Pinho, no Recife, com o Cannibal, baixista/vocalista/compositor da banda Devotos que completou 35 anos de história no último ano; 2. reportagem sobre as revoltas populares e a cena punk da Indonésia, com pesquisa, material traduzido e entrevista exclusiva.
Esta segunda é a que acaba de ficar pronta - e deu um trabalhão. Entrevistei Fakhran, um punk indonésio de 37 anos que tornou-se pesquisador acadêmico e estuda justamente as subculturas locais. Para completar o time de fontes traduzi duas entrevistas publicadas em inglês pela Crimethinc: uma é com um militante anarquista que não se identificou e outra é com Frans Ari Prasetyo, fotógrafo e pesquisador em Bandung. O Incidente de Aceh, retratado pela Vice, é uma das histórias que contamos.
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