Trump, Musk e o ecofascismo
Saiu o relatório da Oxfam de 2025 e adivinhem: a concentração de riqueza segue em "viés de alta", pra liberal nenhum botar defeito
Na segunda-feira (20) já circulava o novo relatório da Oxfam, lançado dias antes em Davos e intitulado “As custas de Quem? A origem da riqueza e a construção da injustiça no colonialismo”. O resultado não é nenhuma novidade para quem acompanha ano a ano esses relatórios e caminha pelas ruas das grandes cidades brasileiras: a concentração de renda continua aumentando em detrimento de salários, direitos e bens comuns. A diferença é que o acirramento desse quadro está cada vez mais acelerado.
Em 2024, segundo o relatório, a riqueza dos bilionários cresceu em 2 trilhões de dólares, três vezes mais rápido do que em 2023. 60% dessa riqueza é fruto de herança, tráfico de influência, corrupção ou monopólio. Enquanto isso, aponta a Oxfam, o “número de pessoas vivendo na pobreza mal mudou desde 1990”.
Entre os principais destaques do relatório, a entidade prevê a ascensão de pelo menos 5 trilionários em 10 anos (sim, teremos um problema ainda maior). Também aponta a criação de 204 novos bilionários em 2024 (cerca de quatro por semana) e traz o dado de que o 1% mais rico do Norte global dragou 30 milhões de dólares por hora do Sul global.
Para ler o relatório completo, clique aqui.
A notícia mal conseguiu virar assunto porque ocorria no mesmo dia a posse do bilionário Donald Trump como presidente dos Estados Unidos. Acompanhado de outros bilionários, em especial os donos das chamadas Big Techs, Mark Zuckerberg e Elon Musk. O novo “mister president” anunciou, entre outras sandices, a saída de seu país dos Acordos de Paris acompanhada de uma espécie de programa energético para o inferno, que estimula a queima de combustíveis fósseis e fecha as portas para alternativas. Já tomada como “o novo pré-sal”, a foz do Amazonas que se cuide.
Na posse, Musk roubou a cena ao fazer uma verdadeira saudação nazista ao discursar. O dono do X e da Tesla (entre outras) foi chamado pelo novo mandatário para “reduzir o Estado americano”, em cargo de primeiro escalão do Executivo. Um “quase-ministro do Estado mínimo” discursando daquela forma. Seu gesto supremacista, apesar de obvio, tem sido relativizado por setores da imprensa, das redes antissociais e do próprio Musk.
O bilionário é a prova cabal daquilo que Daniel Guérin escreveu em “Fascismo e Grande Capital” (Editora Unicamp). Na obra publicada em 1936, Guérin relata suas viagens pela Alemanha nazi, explicando como todas as forças políticas e econômicas atuaram na ascensão do regime que naquele momento ainda estava longe de terminar. Sua principal tese, resumindo de forma grosseira, é de que os fascismos viriam à reboque da própria democracia burguesa e do liberalismo sempre que estes estivessem em apuros diante de revoltas e revoluções populares. Atualmente, o fantasma talvez nem seja o do comunismo, mas o da imigração em massa e das revoltas populares ocasionadas pelo colapso climático.
Para explicar sua tese, Guérin demonstrou em detalhes como os principais setores das burguesias locais se articularam em torno do ideário fascista naquele tempo e espaço para garantir seus interesses. Setor por setor, mostrou como interessava o “novo regime” para os magnatas. Nos dias atuais, como vimos, Musk e cia. integram o que McKenzie Wark chamou de classe vetorialista, grupo oriundo do desenvolvimento tecnológico para comunicações, serviços e logística que estaria na ponta-de-lança de um novo movimento do capitalismo. E seu interesse está exatamente nos recursos cada vez mais escassos de nosso planeta. A Bolívia que o diga.
Se em sua versão clássica o fascismo era autodeclarado, a partir do pós-guerra ficou mais desconfortável a autoidentificação, e as práticas do chamado espectro também assumiram maior variedade em relação aos exemplos clássicos, dificultando a identificação em alguns casos pontuais. Meses atrás perguntei justamente isso a Mark Bray, historiador estadunidense e autor de “Antifa - O Manual Antifascista” (Autonomia Literária). (A entrevista infelizmente não encontrou um meio de comunicação interessado em sua publicação, o que reforça o meu eterno pedido: apoie meu trabalho! Se não puder doar, indique essa newsletter para seus contatos)
“Alguns deles [personalidades da atual extrema direita] são fascistas clássicos, mas a maioria não o é se estivermos confinados a uma simples resposta sim/não. Falo sobre espectros do fascismo. Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando as políticas explícitas do fascismo e do nazismo se tornaram tabu, vários grupos e indivíduos diferentes ajustaram as suas políticas e a forma como as apresentavam. Além disso, se adicionarmos à mistura a influência da Nova Direita Francesa e a mudança da extrema direita que antes visava explicitamente os judeus e agora mira nos muçulmanos e migrantes, podemos ver que as condições mudaram significativamente. No entanto, o fascismo continuou a ser um polo importante na política da extrema direita (o grau em que isso se dá é que varia). Além disso, embora a agenda do Vox na Espanha, por exemplo, difira significativamente da Falange dos anos 30, se eles ganhassem o poder, estremeço ao pensar no que poderiam fazer durante um período de crise e conflito social. Trump tornou-se mais fascista nos últimos 5-6 anos e eu não discutiria com alguém que o chama abertamente de fascista. No espectro do fascismo, ele está bastante próximo dos exemplos dos livros didáticos, na medida em que a maioria de suas características se enquadra na definição. No entanto, não acho que ele se encaixe 100%. Não creio que ele realmente se preocupe em transformar a sociedade, mas sim em ser adorado, e a política de extrema direita é o veículo que escolheu para esse fim. Mas ele tem muitos fascistas na sua órbita, o que torna esta conversa algo inútil, uma vez que as suas políticas irão nessa direção”
Mergulhemos nesse espectro de fascismos que Mark Bray descreve. Buscando uma explicação para essa relação entre Trump, outros figurões da extrema direita, Musk/big techs e uma conjuntura mais ampla de colapso socioambiental, creio que o conceito de “ecofascismo” é aquele que melhor vai articular os elementos em jogo.
Mas é um conceito ainda pouco falado aqui nesse território de Abya Yala militarmente ocupado pelo Estado brasileiro, e os materiais que encontrei em português tratam a coisa de forma hipotética, quando não o é. Então, para começarmos essa conversa, que promete se estender ao longo do ano (de tempos em tempos devo escrever algo a respeito), vamos identificar seus principais discursos e práticas - nem todos abertamente rotulados como “ecofascistas”, mas em consonância com a essência da definição.
Identificando o ecofascismo
Em linhas gerais, trata-se da combinação entre fascismo e ecologia, partindo do pressuposto de que para que a humanidade e o meio ambiente sobrevivam, é necessário um estrito controle das populações humanas, abrindo caminho para a eliminação daquelas excluídas do processo de produção e consideradas inferiores. Ou seja, segundo essa abordagem, abandonar os combustíveis fósseis, por exemplo, seria pura balela até mesmo em termos ambientais. Bastaria simplesmente “eliminar” os “excedentes” humanos que estariam “sobrecarregando” um “planeta já no limite”.
Esses “excedentes humanos” podem ser por exemplo os imigrantes (no caso dos EUA e Europa) ou as populações marginalizadas (e não brancas na maioria esmagadora dos casos) de nossa América Latina - para onde esses imigrantes iriam após sua expulsão do Norte.
E é aí que isso terá grande relação com o colonialismo, uma vez que boa parte dessas populações descartáveis são oriundas do Sul global, o mesmo que segundo a Oxfam tem suas riquezas dragadas pelo 1% mais rico do Norte. Além disso, há toda uma herança de escravização/exploração, roubo de terra e brutalidade policial que deriva exatamente dos processos coloniais.
Baseado na sua experiência como um homem oriundo de um povo devastado pelo colonialismo, Aílton Krenak faz uma crítica ao próprio conceito de “humanidade” nos seus livros. Ele aponta que na prática uma parcela grande dos seres humanos está excluída dessa tal “humanidade” - não são vistos como humanos, logo, a “humanidade” não é um conceito “universal” como prega o racionalismo branco e europeu. O que Krenak identifica e critica em seu sofisticado pensamento é justamente a operação discursiva que pode embasar a operação biopolítica que decidirá, num presente-futuro ecofascista, quem está acolhido pela “humanidade” que sobreviverá à crise climática, e quem não está e será queimado na fogueira da “salvação do planeta”.
Na quarta-feira (22), o México já preparava suas forças de segurança e montava tendas nas fronteiras com os EUA para receber os centenas de milhares de migrantes que Trump promete expulsar.
A primeira aparição midiática do termo “ecofascismo” ocorreria em 2019 por conta de dois ataques terroristas perpetrados por supremacistas brancos. O primeiro, em março, vitimou 51 pessoas que frequentavam as duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia. Tarrant Brenton, o autor dos disparos, era um homem de origem australiana. Se autoproclamava “etnonacionalista” e “ecofascista” nas redes sociais.
O outro caso, em agosto do mesmo ano, ocorreu em um Walmart no Texas. Patrick Crusius, ativista supremacista de 21 anos, foi o autor. Ele próprio se entregou à polícia e admitiu a autoria do ataque que deixou 22 pessoas mortas. A motivação conforme manifesto prévio divulgando no fórum anônimo 8chan era emblemática: ele acreditava estar protegendo o Texas de uma invasão latino-americana. “Se conseguirmos nos livrar de pessoas suficientes, nosso modo de vida poderá ser mais sustentável”, escreveu.
Mas o ecofascismo não é apenas um distante pensamento facho-lado-B, escondido numa darkweb hipotética ou nos rincões do Norte global, como temos visto nos poucos conteúdos disponíveis a esse respeito no Brasil. Ao contrário, é um conceito que já está em marcha nas nossas sociedades de exclusão, e nem sempre com esse nome.
No Brasil, temos alguns exemplos de discursos e práticas ecofascistas em marcha. O primeiro, e mais óbvio, é o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro. Ao longo da sua carreira política, concorrendo ao Congresso Nacional, defendeu por diversas vezes a esterilização de mulheres nas favelas como política de planejamento familiar e segurança pública. Só mais tarde a “proposta” se fixaria na ideia de castração química para condenados por estupro, tornando-a mais palatável para as maiorias educadas pelo punitivismo mediatizado (para não falarmos da tese da “imunidade de rebanho” defendida por ele durante a pandemia, para dar outro exemplo).
A isso podemos somar as próprias polícias que promovem um massacre a prestação de larga escala no Brasil com o objetivo de “limpar as cidades do crime” e proteger os “cidadãos de bem” e seus patrimônios dos perigos do colapso social. O fato disso ter se tornado uma espécie de showbusiness eleitoral nos alerta para a capilaridade que o ecofascismo pode obter por aqui.
Ambas as características mencionadas desse ecofascismo à brasileira podem ser encontradas nas campanhas eleitorais de Jair e Flávio Bolsonaro desde o começo dos anos 2000. No vídeo abaixo Flávio defende “controle de natalidade” como política de “combate à degradação ambiental” em pleno horário eleitoral gratuito de 2006, quando se reelegeria à Alerj. As imagens são de meus arquivos pessoais de pesquisa, não as encontro online em 2025.
O ecofascismo, assim como toda forma política do espectro fascista, terá mais relação com suas práticas e consequências do que com a autodeclaração ideológica relegada aos chamados “lobos solitários” (que não são lobos, nem solitários) como os do Texas e da Nova Zelândia.
Carlos Taibo, cientista político e anarquista espanhol que citei em texto anterior, escreve uma definição do termo no seu último livro, “Ecofascismo, uma introdução”, ainda não traduzido ao português [alô, editoras!]. Nela, aponta como esse ideário pode servir não só para os “malucos de extrema direita”, mas sobretudo para setores tidos como moderados da política, economia e outras áreas estratégicas duma sociedade como as que vivemos.
“Um projeto pelo qual os estamentos dirigentes do mundo tratarão de preservar recursos visivelmente escassos para uma minoria seleta, enquanto marginalizam e exterminam as populações excedentes num planeta que foi explorado muito além dos seus limites. O ecofascismo não seria um projeto negacionista vinculado a círculos marginais da extrema direita, mas surgiria no âmago de alguns dos maiores poderes políticos e econômicos que buscam preservar recursos escassos em poucas mãos” (Carlos Taibo).
Taibo aponta que, assim como o eleito Hitler nos anos 1930 e figuras da atualidade como Trump e Bolsonaro, também eleitos após conviverem décadas nos círculos de poder sem encontrarem grande resistência, é possível que o ecofascismo entre em simbiose com a própria democracia liberal, transformando-a à sua imagem e semelhança para que não seja chamado pelo nome que tem.
Sobram exemplos práticos em nosso cotidiano brasileiro.
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*Se o tema “Trump e imigração nos EUA” te interessa, conheça a “História de uma indocumentada - A travessia do deserto de Sonora-Arizona”, livro escrito por Ilka Oliva Corado e traduzido por mim. Trata-se de um relato inédito de uma imigrante que atravessou a pé a fronteira, passando por todo tipo de apuros em busca de uma vida melhor. A história narra em detalhes o que aconteceu à autora guatemalteca. Um relato gigante, não em páginas, mas em importância. O primeiro a que tive acesso com riqueza de detalhes sobre a travessia, e, acima de tudo, escrito por uma mulher de muita fibra. Restam poucos exemplares. Adquira um e fortaleça meu trabalho. CLIQUE AQUI