Kallocaína e o cidadão-polícia
Um Estado totalmente soberano precisa de um cidadão que o coloque como prioridade total sobre todos os outros tipos de relação social possíveis. Na distopia da vida real as prioridades se misturam
Rápido aviso: Soltei uma nota aqui nessa plataforma (substack) dizendo que não ia ter newsletter essa semana, mas teve. Brotou isso aqui do nada na madrugada. Mas enfim, pela primeira vez em muito tempo não estou acompanhando notícias. Estou a full com o projeto sobre as mães de Osasco e não deu tempo de ver mais nada. Fico devendo um papo sobre taxação dos super ricos e esse festival de policarpoquaremismo que estamos vendo nas redes antissociais depois das bobagens do Trump, mas não sei se pretendo pagar essa dívida. E pra quem é novo por aqui, não uso cabeçalho, é assim mesmo. Sextou!!
Qual foi a coisa mais idiota que você viu nos últimos tempos? A mais estúpida? Ou talvez não “a coisa mais idiota ou estúpida”, mas aquela coisa absolutamente imbecil que mais chamou a sua atenção - afinal de contas, a oferta desse tipo de commodity é altíssima nesse mundo de smartphones e demais tranqueiras de tecnologia da informação, o que torna a eleição da estupidez campeã uma tarefa muito trabalhosa.
Pois a burrice que mais me chamou a atenção nos últimos tempos, e é talvez uma das coisas mais burras que vejo se repetir em certos grupos políticos periódicamente, foi uma ou duas semanas atrás, quando os tais webstalinistas resolveram desenterrar em coro o papo de que George Orwell seria um agente da CIA. Óbvio, o homem era pago para desacreditar a maravilhosa União Soviética e sua sociedade perfeita, que instituía o socialismo na Terra como a China faz na atualidade. Ah… o campismo.
Mas a teoria é estúpida e Orwell de liberal não tinha é nada. Foi combatente do POUM (partido trotskista) e depois da CNT (confederação anarquista) na Revolução Espanhola e viu de muito perto a traição dos stalinistas. As emboscadas na Catalunha ou em Madrid em que os militantes do PSUC fuzilavam seus supostos aliados pelas costas, encurralados pois as linhas fascistas estavam logo adiante, sob o pretexto de “forjar a união da República” na luta contra os “rebeldes fascistas do general Franco”. Antes disso, Orwell era um simpatizante do bolchevismo. Depois, tornou-se um crítico. Um libertário no sentido original da palavra, não nesse sentido rebaixado trazido pelo patético mercado de ideias das big techs. Com esse olhar, Orwell se dedicou a vida a escrever sobre seu tempo.
Escreveu Dias na Birmânia, uma crítica ácida contra a colonização inglesa no atual Mianmar. Acompanhou moradores de rua ingleses nos anos 1950 e já escrevia, naquele tempo, talvez um dos primeiros, sobre a forte e brutal exclusão social que as democracias-liberais-capitalistas produzem. Seu célebre texto “Como morrem os pobres” é um marco na lida literária com os excluídos-dos-excluídos.
Orwell viveu, escreveu e lutou, e muito. Diferente dos nossos influencers neostalinistas que não seguram cinco minutos de conversa séria sobre o mundo, mas se sentem no Roda Viva ao “ganharem” seus debates contra ancaps virgens de 40 anos em plena plataforma de vídeos da Meta. Talvez por isso repitam tamanha estupidez sobre alguém que está além das suas capacidades (e práticas).
Mas esse não é para isso ser um artigo sobre Orwell ou sobre esses projetos de intelectual orgânico. Quero falar sobre Kallocaína, livro da escritora sueca Karin Boye, que descobri ser um dos grandes nomes da literatura do século XX naquele país. É que o lance do Orwell me instigou a ler suas obras, só que como já li tudo (ou quase tudo) dele disponível em português, e também obras e autores correlatos, optei por algo novo. E eis que Kallocaína cai em minhas mãos com uma orelha que diz ter sido uma das prováveis inspirações para que Orwell escrevesse 1984.
O livro é curto e estou na metade. Não vou dar maiores spoilers, só descrever o que me interessa por agora. A história se passa, tal qual 1984 de Orwell, num futuro distópico em que se vive num Estado totalitário. No caso de Kallocaína, trata-se do Estado Mundial.
Esse Estado Mundial, como o nome supõe (e até agora não tenho razões para crer em contrário), é o único Estado em todo o mundo, podendo restar, talvez, alguns territórios fora do seu alcance. Pouco ou nada é falado sobre isso, isso é pura suposição minha. O que o enredo faz é reafirmar a necessidade do Estado Mundial de sempre crescer e crescer. Precisa crescer a economia, a ciência e os exércitos. Precisa sempre aumentar a obediência e o empenho dos cidadãos nessa glória coletiva representada no Estado Mundial. E esses cidadãos não são qualquer classe de cidadão. Eles são cidadãos-soldados. Todos os habitantes o são.
O cidadão-soldado deve obediência total ao Estado mundial. Ele se inscreve nas profissões onde quer servir e seguirá uma rígida hierarquia em qualquer área e profissão, no intuito de servir a esse ente maior. Obtendo sucesso, será recompensado e viverá com melhores recursos. Ele pode ser de fato um militar ou policial, ou servir ao Estado Mundial como médico, pedreiro, veterinário, comerciante ou qualquer outra profissão. A ideia de “cidadão-soldado” está mais relacionada à forma de organização social do que ao ofício propriamente dito.
A trama se desenvolve em torno da descoberta da kallocaína, uma substância que ao ser ingerida por qualquer pessoa, ou melhor, por qualquer cidadão-soldado, o faz cometer sincericídios um após o outro. O químico e inventor da substância, o cidadão-soldado Leo Kall, é o narrador da história, contada em primeira pessoa. Para ele, sua invenção permitirá ao Estado ter controle da última fronteira do desconhecido: o pensamento.
Então começa a fazer testes em cidadãos-soldados autoinscritos na profissão de “cobaia”. Um desses testes consistia em quebrar a confiança entre essas cobaias e seus cônjuges. A cobaia era instruída por Leo Kall a contar uma história cabeluda em casa, de que estava participando de uma conspitação contra o Estado Mundial. No dia seguinte a polícia levava esses cônjuges para o laboratório, onde tomavam uma dose de kallocaína e delatavam os seus parceiros, supostamente terroristas, sem nem se darem conta. Mas parei por aqui, já está bem ilustrado. Começa a dar merda e o livro começa a escalar. Chega de spoiler.
Leo Kall nos conta a história da prisão, e o desfecho da obra deve explicar a razão pela qual está preso. Seu chefe, o cidadão-soldado Rissen, dá sinais de ser uma pessoa mais reticente em relação ao estado das coisas, enquanto Leo Kall, que no começo da história recebe uma espécie de advertência pública, tenta se mostrar mais realista que o rei. Ou mais estadista-mundialista que o Estado Mundial. Por isso ele desperta alguma simpatia no ambicioso chefe de polícia Karrek, que pretende usar sua invenção como uma tecnologia para resolver crimes. Rissen lamenta: “isso aqui [o laboratório onde trabalham] vai ficar cada vez mais policial e menos científico”.
Tal como 1984 de Orwell, Não Verás País Nenhum de Inácio Loyola Brandão, Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley ou Nós de Ievgueni Zamiátin, a distopia de Karin Boye nos traz diversas passagens ricas em reflexões sobre a nossa própria distopia, a do mundo real, do capitalismo terminal. A partir desse breve resumo da ambientação de Kallocaína, chamo atenção para duas dessas possíveis reflexões.
A primeira reflexão diz respeito à insatisfação de Rissen, o cidadão-soldado reticente, que teme que a nova tecnologia inventada pelo seu subordinado seja usada para prender e acusar outros cidadãos-soldados. Rissen não é besta. Ele sabe que a finalidade com que aquela nova tecnologia foi criada é justamente essa, e que não haveria caminho diferente para seguir. Ele até tenta barrar o advento da kallocaína utilizando-se do seu poder na burocracia, mas é insuficiente. Existe a demanda. É a lei de mercado em vigor em pleno Estado Mundial. E nada poderá parar a nova tecnologia. Ou vai?
A segunda reflexão fica por conta do nível de obediência e dedicação que é exigido do cidadão-soldado. Ele precisa ter relações mais solidificadas e sofisticadas com o Estado Mundial do que com seus próprios cônjuges. Caso contrário pode ser considerado um traidor ou um terrorista em potencial, alguém que esconderia das autoridades se por exemplo um ente querido se juntasse a um grupo rebelde. Há algo que vai lembrar a ideia de vigilância preditiva, de prevenção a crimes por meio tecnológico, que é vendida em nosso mundo real, por exemplo, por meio dos sistemas Smartsampa e Muralha Paulista.
Boye acerta aí. Mas erra (e esse erro só seria melhor percebido após a década de 1970 como advento do neoliberalismo; o livro é de 1940) quando cria um mundo em que o Estado exige essa prioridade das relações dos cidadãos. A alegoria é bem desenvolvida, mas na distopia da vida real essa prioridade é mais fluida. Assim como o tal Estado Mundial, que não existe em nossa realidade como Estado, mas como fluxo de capital - convivendo sem maiores problemas com as existências de múltiplos estados.
O que não muda tanto é o cidadão-soldado. Se no Estado Mundial de Kallocaína ele está totalmente envolvido com a burocracia estatal e sua hierarquia rígida, em nosso mundo o cidadão-polícia tem um menu interminável de distrações inúteis para passar o pouco tempo livre que tem ou a possibilidade de monetizar cada pequena parte da sua vida não comercial - geralmente com a cabeça baixa pregada numa tela de celular - enquanto dedica a vida e a saúde a alguma pequena fração desse Fluxo Global de Armas e Capital, o equivalente em nossa própria distopia do tal Estado Mundial.
Sem esperanças, pois sequer entende tal conceito, o cidadão-polícia de nossa vida real vive com medo. Ele tem medo de ser roubado por um noia no ponto de ônibus às 5 da manhã. Ele tem medo de ser morto nas ruas por qualquer gangue armada, seja ela oficial ou não. Ele tem medo de perder seu emprego, sua moradia, seu carro, o pouco que tiver em posse. Tem medo até de que apareça um pixador e estrague o portão que acabou de pintar - “e a tinta está cara, meu deus!”. Ele liga a televisão ou o celular, e vê o político, o apresentador ou o influencer fascista prometendo “acabar logo com isso daí, com essa vagabundagem aí”. E ele fará o que estiver ao seu alcance para ajudar.
É por isso que massacres como a Chacina de Osasco e Barueri, que completa 10 anos daqui um mês e sobre a qual tenho trabalhado nos últimos tempos, acontecem. Mata-se 20 ou 30 pessoas, de repente. Pessoas que estavam em sua rotina. Indo para a casa de um amigo, para um bar na vizinhança, e nada acontece. Estamos cercados por cidadãos-polícia. É desesperador, mas precisamos encarar a realidade. Vivemos o sonho da distopia própria.
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A rifa está sendo organizada pelo LASInTec-Unifesp (onde trabalho no momento) e seu objetivo é garantir transporte e alimentação para as famílias das vítimas de Osasco e Barueri, assim como para pessoas de outros movimentos de vítimas do Estado e localidades que vão prestigiar o ato.
O sorteio da rifa será em 14/08 e o ato em memória dos 10 anos da Chacina de Osasco e Barueri em 16/08, a partir das 14h, no Munhoz Júnior (divisa com Barueri).
Cada número da rifa está sendo vendido por 10 reais e há promoções para a compra de vários números. No final das contas serão feitos 10 sorteios e entre os brindes estão livros de diversas editoras parceiras que decidiram apoiar a luta das mães. São elas: Edições Insurrectas, Kinoruss, Ruptura, Sobinfluência, N-1 Edições, Hedra, Ubu, Fósforo, Crocodilo, Glac Edições, Autonomia Literária, Igra Kniga e Teia dos Povos.
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